2009-11-03

Porque Socialismo - Albert Einstein

“É aconselhável para quem não é especialista em assuntos econômicos e sociais expressar seus pontos de vista sobre o social­ismo? Creio que sim, por uma série de razões. Consideremos primeiro a questão do ponto de vista do con­hecimento científico. Pode parecer que não há diferenças me­todológicas essências entre Astronomia e Economia: os cientistas de ambos os campos tentaram descobrir leis de aceitação geral para um grupo circunscrito de fenômenos para tornar a intercon­exão desses fenômenos mais facilmente compreensível. Mas na re­alidade estas diferenças metodológicas existem. A descoberta de leis gerais no campo da Economia é dificultada pela circunstância de que os fenômenos econômicos observados são freqüentemente afetados por múltiplos fatores, muito difíceis de serem avaliados separadamente. Além disso, a experiência acumulada desde o iní­cio, o chamado período civilizado da história humana, tem sido - como é bem conhecido - grandemente influenciada e limitada por causas que não são, de forma alguma, exclusivamente de natureza econômica. Por exemplo, a maioria das mais importantes nações da história devem a sua influência à conquista. Os povos conquis­tadores se estabeleceram, legal e economicamente, como a classe privilegiada do país conquistado. Arrebataram para si mesmos o monopólio da propriedade da terra e constituíam a classe sacerdotal com membros de suas próprias camadas. Os sacerdotes, exercendo o controle da educação, tornaram a divisão de classes da sociedade numa instituição permanente e criam um sistema de valores pelo qual o povo passou a ser, dali em diante, guiado, em grande parte inconscientemente, no seu comportamento social.
Mas a tradição histórica é, por assim dizer, coisa de ontem; em parte alguma conseguimos realmente sobrepujar o que Thorstein Veblen denominou de “fase predatória” do desenvolvimento hu­mano. Os fatos econômicos observáveis pertencem a essa fase e até mesmo as leis que podemos inferir deles não são aplicáveis a outras fases. Uma vez que o propósito real do socialismo é precisamente sobrepujar e ultrapassar a fase predatória do desenvolvimento hu­mano, a ciência da Economia em seu estado atual pouca luz pode lançar sobre a sociedade socialista do futuro.
Em segundo lugar, o socialismo dirige-se a um fim sócio-éti­co. A Ciência, porém, não pode criar fins, e menos ainda instila-los nos seres humanos. A ciência, na melhor das hipóteses, pode su­prir os meios pelos quais certos fins podem ser alcançados. Mas os fins em si mesmos não são determinados por personalidades com elevados ideais éticos e - se esses fins não são nati-mortos, mas vitais e vigorosos - são adotados e levados adiante pelos inúmeros seres humanos que, meio inconscientemente, determinam a lenta evolução da sociedade.
Por estas razões devemos nos pôr em guarda para não su­perestimar a Ciência e os métodos científicos, quando se trata de uma questão de problemas humanos; e não devemos presumir que os técnicos são os únicos que têm o direito de se expressar sobre questões que afetam a organização da sociedade.

Indivíduo e sociedade

Inúmeras são as vozes que se têm levantado, há algum tempo já, advertindo que a sociedade humana está passando por uma cri­se, e que sua estabilidade foi perigosamente abalada. É caracterís­tico de uma situação assim que os indivíduos se sintam indifer­entes, ou mesmo hostis, em relação ao grupo, pequeno ou grande, a que pertencem. Para ilustrar meu pensamento, quero recordar aqui uma experiência pessoal.
Discutia recentemente com um homem inteligente e de boa vontade, a ameaça de uma nova guerra, a qual na minha opinião, poria em grave perigo a existência da humanidade. Observava eu que somente uma organização supranacional poderia oferecer pro­teção contra semelhante perigo. Nesse ponto meu visitante, muito calma e friamente, me respondeu: “Por que você se opõe tão inten­samente ao desaparecimento da raça humana?”
Estou certo de que apenas um século atrás ninguém teria tão obviamente feito uma insinuação como essa. É a declaração de um homem que lutara em vão para atingir um equilíbrio dentro de si mes­mo e que havia praticamente perdido a esperança de consegui-lo. É a expressão de uma solidão e de um isolamento dolorosos que tantas pessoas sofrem hoje em dia. Qual é a causa? Haverá uma solução?
É fácil fazer estas perguntas, mas difícil respondê-las com um mínimo de certeza. Devo tentá-lo, no entanto, da melhor ma­neira possível, embora esteja muito consciente do fato de serem os nossos sentimentos e esforços frequentemente contraditórios e obscuros e de que não podem ser expressos por meio de fórmulas fáceis ou simples.
O homem é simultaneamente um ser solitário e um ser so­cial. Como ser solitário, tenta proteger sua própria existência e a daqueles que lhe são chegados, para satisfazer seus desejos pes­soais e para desenvolver suas habilidades inatas. Como ser social, busca conquistar o reconhecimento e o afeto dos outros seres hu­manos, compartilhar dos seus prazeres, confortá-los nas suas tris­tezas, e melhorar suas condições de vida. Somente a existência desses esforços diferentes e muitas vezes conflitantes respondem pelo caráter especial do homem, e a combinações específica desses esforços determina até que ponto cada indivíduo consegue atingir equilíbrio interior e contribuir para o bem-estar da sociedade. É bem possível que a força relativa desses dois estímulos seja, em sua maior parte, determinada pela herança. Mas a personalidade que finalmente emerge é amplamente formada pelo ambiente em que o homem se encontra durante o seu desenvolvimento, pela estrutura da sociedade em que ele cresce, pela tradição dessa sociedade pelo apreço dessa sociedade por determinados tipos de comportamento. O conceito abstrato “sociedade” significa para o indivíduo a soma total de suas relações diretas e indiretas com seus contemporâneos e com todas as pessoas das gerações anteriores. O indivíduo é capaz de pensar, sentir, esforçar-se, e trabalhar por si mesmo. Mas de­pende tanto da sociedade em relação à sua existência física, intelec­tual e emocional, que é impossível pensar nele ou entendê-lo fora do contexto da sociedade. É a “sociedade” que fornece ao homem a comida, a roupa, o lar, as ferramentas de trabalho, a linguagem, as formas de pensar e a maior parte do conteúdo do pensamento. Sua vida se torna possível através do trabalho e das realizações de muitos milhões de pessoas, passadas e presentes, que estão todas ocultas atrás da pequena palavra “sociedade”.
É evidente, portanto, que a dependência do indivíduo em re­lação à sociedade é um fato da Natureza que não pode ser eliminado - tal como no caso das formigas e abelhas. Contudo, ao passo que todo o processo de vida das formigas e das abelhas é determinado, até o mais ínfimo detalhe, por instintos hereditários rígidos, o pa­drão social e o inter-relacionamento dos seres humanos são muito variáveis e suscetíveis de mudança. A memória, a capacidade de fazer novas combinações, o dom de comunicação oral tornaram possível desenvolvimentos entre os seres humanos que não são ditados pelas necessidades biológicas. Tais desenvolvimentos se manifestam em tradições, instituições e organizações; na literatura; nas realizações científicas e de engenharia; nas obras de arte. Isso explica como ac­ontece que, em certo sentido, o homem possa influenciar a sua vida por meio de sua própria conduta, e que nesse processo o pensamento e o querer conscientes possam desempenhar sua parte.

Comunidade planetária

O homem adquire ao nascer, pela hereditariedade, uma con­stituição biológica que devemos considerar fixa e inalterável, in­cluindo estímulos naturais que são característicos da espécie hu­mana. Além disso, durante a vida, o homem adquire a constituição cultural que adota da sociedade através da comunicação e através de muitos outros tipos de influências. É essa constituição cultural que, com o passar do tempo, está sujeita a mudanças e que determina em grande parte o relacionamento entre o indivíduo e a sociedade. A Antropologia moderna nos ensina, através da investigação com­parativa das chamadas culturas primitivas, que o comportamento social dos seres humanos pode diferir enormemente, dependendo dos padrões culturais que prevalecem e dos tipos de organização que predominam na sociedade. É nisto que os que se esforçam para melhorar a sorte do homem podem fundamentar suas esperanças: os seres humanos não estão condenados, devido à sua constituição biológica, a se aniquilarem uns aos outros, nem a ficarem à mercê de um destino cruel e auto-infringido.
Se nos perguntarem como a estrutura da sociedade e a ati­tude cultural dos homens deveriam mudar para tornar a vida hu­mana tão satisfatória quanto possível, deveremos estar permanen­temente conscientes do fato de haver certas condições que somos incapazes de modificar. Como já foi mencionado antes, a natureza biológica do homem não está, para todos os fins práticos, sujeita a mudança. Além do mais, os desenvolvimentos tecnológicos e de­mográficos dos últimos séculos criaram condições irreversíveis. Em populações estabelecidas e de relativa densidade demográfica, com os bens que são indispensáveis à continuação de sua existên­cia, são absolutamente necessários uma rígida divisão de trabalho e um esquema produtivo altamente centralizado. O tempo – que, ao olharmos para o passado, nos parece tão idílico – em que indivídu­os ou grupos relativamente pequenos podiam ser completamente auto-suficientes já passou. Não é exagero dizer que a humanidade se constitui, neste momento, numa comunidade planetária de produção e consumo.
Cheguei ao ponto, agora em que posso indicar sucintamente o que para mim constitui a essência da crise de nossa época. Diz res­peito ao relacionamento do indivíduo com a sociedade. O indivíduo tornou-se mais consciente do que nunca da sua dependência da sociedade. Mas ele não experimenta essa dependência como uma qualidade positiva, como uma ligação orgânica, como uma força protetora, e sim como ameaça a seus direitos naturais, ou até à sua existência econômica. Além do mais, sua posição na sociedade é tal que os impulsos egoísticos de sua constituição estão constante­mente sendo acentuados, ao passo que seus impulsos sociais, que são mais fracos por natureza, deterioram-se progressivamente. To­dos os seres humanos, qualquer que seja sua posição na sociedade, estão sofrendo desse processo de deterioração. Prisioneiros, sem o saber, de seu próprio egocentrismo, sentem-se inseguros, solitários e desprovidos do ingênuo, simples e despojado prazer de viver. O homem pode encontrar significado na vida, curta e perigosa como é, somente através do devotamento à sociedade.

Anarquia capitalista

A anarquia econômica da sociedade capitalista, como existe hoje em dia, é, na minha opinião, a verdadeira origem do mal. Ve­mos diante de nós uma enorme comunidade de produtores, cujos membros estão incessantemente esforçando-se por arrebatar, uns dos outros, os frutos do seu trabalho coletivo – não pela força, mas em geral pela fácil obediência a regras legalmente estabelecidas. A esse respeito é importante perceber que os meios de produção – isto é, toda a capacidade produtiva necessária para produzir bens de con­sumo assim como outros bens de capital – podem ser legalmente, e na maior parte dos casos são, propriedade privada de indivíduos.
Para simplificar, na discussão que segue, chamarei de “trabal­hadores” a todos aqueles que não compartilham da posse dos meios de produção – embora isso não corresponda ao uso habitual do termo. O proprietário dos meios de produção está em condições de comprar a capacidade de trabalho do trabalhador. Usando os meios de produção, o trabalhador produz novos bens, que se tornam propriedade do capi­talista. O ponto essencial desse processo é a relação entre o que o tra­balhador produz e o que ele recebe como pagamento, medidos ambos em termos de valor real. Na medida em que o contrato de trabalho é “livre”, o que o trabalhador recebe é determinado não pelo valor real dos bens que ele produz, mas pelas suas necessidades mínimas e pelas exigências dos capitalistas quanto à força de trabalho em relação ao número de trabalhadores que competem pelos empregos. É impor­tante entender que mesmo em teoria o pagamento do trabalhador não é determinado pelo valor que ele produz.
O capital privado tende a concentrar-se em poucas mãos, em parte devido à competição entre os capitalistas e em parte devido ao desenvolvimento tecnológico e à crescente divisão de trabalho, que encoraja a formação de maiores unidades de produção em det­rimento das menores. O resultado desses desenvolvimentos é uma oligarquia de capital privado cujo enorme poder não pode ser eficazmente controlado, mesmo numa sociedade política organizada democraticamente. Isto é assim, já que os membros dos corpos leg­islativos são escolhidos por partidos políticos, extensamente finan­ciados ou influenciados por outros meios pelos capitalistas privados que, para todos os fins práticos, separam o eleitorado da legislação. A conseqüência é que os representantes do povo (deputados) de fato não protegem suficientemente os interesses dos setores menos privilegiados da população. Além do mais, nas condições vigentes, direta ou indiretamente, controlam as principais fontes de infor­mação (a imprensa, o rádio, a educação). Assim, é extremamente difícil, e na realidade praticamente impossível, na maioria dos ca­sos, que o indivíduo, como cidadão, chegue a conclusões objetivas e faça uso inteligente de seus direitos políticos.
A situação que prevalece numa economia baseada na proprie­dade privada do capital é, portanto, caracterizada por dois princí­pios fundamentais: primeiro, os meios de produção (capital) são propriedade privada e os proprietários dispõem deles a seu bel-prazer; segundo, o contrato de trabalho é livre. Naturalmente não existe o que se possa chamar de sociedade capitalista pura, no sen­tido absoluto. Em particular, deve-se notar que os trabalhadores, através de longas e amargas lutas políticas, conseguiram assegurar uma forma melhorada de “contrato livre de trabalho” para certas categorias de trabalhadores. Mas, considerada como um todo, a economia dos dias atuais não difere muito do capitalismo “puro”.
A produção é levada adiante visando o lucro, não a utilidade. Não se prevêm as condições para que todos os que são capazes e desejosos de trabalhar encontrem sempre emprego. Existe quase sempre um “exército de desempregados”. O trabalhador vive no constante temor de perder o seu emprego. Já que os trabalhadores desempregados e os mal pagos não fornecem um mercado lucra­tivo, a produção dos bens de consumo é restringida e grandes di­ficuldades da vida são a conseqüência. O progresso tecnológico fre­quentemente resulta em maior desemprego, em lugar de facilitar a carga de trabalho para todos. O motivo de lucro, aliado à com­petição entre os capitalistas, é responsável por uma instabilidade no acúmulo e na utilização de capital que leva a depressões cada vez mais graves. A competição ilimitada leva a grande desperdício de trabalho e àquela deturpação da consciência social dos indivídu­os que já mencionei antes.
Essa deturpação dos indivíduos é o que considero o pior malefício do capitalismo. Todo o nosso sistema de educação sofre deste mal.
Uma exacerbada atitude competitiva é inculcada nos estu­dantes, que são treinados para adorar o sucesso aquisitivo como preparação para a sua futura carreira.

Por que socialismo?

Estou convencido de que só há um modo de eliminar ess­es males tão graves, a saber, através do estabelecimento de uma economia socialista, acompanhada por um sistema educacional orientado para objetivos sociais. Numa tal economia, os meios de produção seriam propriedade da própria sociedade e utilizados de forma planificada. Uma economia planificada, que adapta a produção às necessidades da comunidade, distribuiria o trabalho a ser realizado entre todos os que fossem capazes de trabalhar e ga­rantiria o sustento de cada homem, mulher ou criança. A educação do indivíduo, além de promover suas próprias habilidades inatas, tentaria desenvolver nele um senso de responsabilidade por seus semelhantes em lugar da glorificação do poder e do sucesso, como em nossa sociedade atual.
Contudo, é necessário lembrar que uma economia planificada não é socialismo, ainda. Uma economia planificada, por si só, pode ser acompanhada pela completa escravização do indivíduo. Chegar ao socialismo exige a solução de alguns problemas sócio-políticos extremamente difíceis: como é possível, em vista da imensa cen­tralização do poder econômico e político, evitar que a burocracia se torne toda-poderosa e prepotente? Como podem os direitos do indivíduo ser protegidos e com isso assegurar-se um contrapeso democrático para equilibrar o poder da burocracia? ”


Este texto, originalmente intitulado “Why Socialism?”, foi escrito por Einstein para o primeiro número (1949) da revista marxista estadunidense Monthly Review. O texto, em sua versão na língua inglesa, pode ser consultado pelo site:
http://www.monthlyreview.org/598einst.htm.

Primeira Edição: Monthly Review, nº 1, maio 1949.

Primeira edição em português: O ensaio foi publicado em livro, editado pela Brasiliense em 1983 e organizado e prefaciado pelo físico brasileiro Mário Schemberg , sob o título “Albert Einstein. Pensamento político e últimas conclusões. Texto retirado do site: http://www2.fpa.org.br/portal/modules/news/article.php?storyid=3850

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